Resumen:
Este trabalho parte por compreender a crise da reprodução social a partir da unidade indivisível, ainda que contraditória, entre produção e reprodução social diante da totalidade do capitalismo. Argumento que compreender e destrinchar tal fenômeno nos auxilia tanto a desvendar as atuais condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, como também perceber uma dinâmica estrutural de funcionamento do próprio modo de produção. O sistema capitalista enfrenta, atualmente, crises estruturais em todos os terrenos: econômico, ecológico, político e reprodutivo-social. A recente pandemia de covid-19, combinada com décadas de neoliberalismo, desnudaram esta situação como nunca antes na história. É inegável que a crise aberta em 2008 aprofundou esse processo, mas também é certo afirmar que há uma relação estrutural na própria lógica de funcionamento do capitalismo que depende, e produz, uma contradição imanente. Neste texto, defendo que o fenômeno de crise da reprodução social merece um destaque para compreender os tempos em que vivemos, mas também as tensões que atravessam, desde a consolidação da hegemonia capitalista mundial, a situação da classe trabalhadora e as condições para a sua reprodução. É verdade que não seria possível compreender a situação de crise social, ou crise da reprodução social, que passam trabalhadoras e suas famílias em todo o planeta, sem a articulação necessária com sua dimensão econômica, política e ecológica. Assim como seria impossível compreender as demais relegando a segundo plano as condições para a reprodução social. Tais processos se retroalimentam, e se apresentam na realidade como uma unidade. Inclusive em uma combinação desigual, porém complementar, entre os países do centro e da periferia do capitalismo. Um aspecto é determinado pelo outro, assim como o determina, em uma totalidade dialética e estruturada. Exemplos atuais não faltam para ilustrar esse quadro: índices crescentes de desemprego; inflação galopante e carestia levando ao aumento da fome e da pobreza;
uberização do trabalho e aumento exponencial do emprego informal; desmonte de políticas sociais e perda de direitos; precarização de serviços públicos, ampliando a privatização e as parcerias público-privadas; disseminação de feminicídios, violência doméstica; encarceramento e genocídio da população negra; mudanças climáticas e catástrofes naturais recorrentes, resultando em uma multiplicação dos refugiados e desabrigados; e um longo etc.. A cada retrocesso em termos econômicos, trabalhistas, ecológicos, sociais, etc., há um impacto na sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidado, e na precarização das condições para reprodução da vida das famílias trabalhadoras. As mulheres, além de todo o trabalho remunerado que fazem ao se inserir no mercado de trabalho, ainda dedicam gratuitamente mais que o dobro que os homens, em média, ao trabalho doméstico e de cuidados com crianças, idosos, e outros membros da família. Há alguns autores que já assumem a perda de fronteiras entre o trabalho pago e o trabalho não-pago, afirmando não haver mais uma dupla ou tripla jornada, para a mulher trabalhadora, mas uma jornada contínua. Esta mulher é espremida entre trabalhar, formal ou informalmente, para garantir uma remuneração que pague meios de subsistência, ao mesmo tempo que precisa se dedicar ao trabalho de reprodução social rotineira e geracional de seu núcleo familiar. A Teoria da Reprodução Social (TRS) busca explicar a reprodução social da força de trabalho como um momento da totalidade do capitalismo, permitindo identificar a base material da opressão de gênero, raça e sexualidade neste sistema. Nos auxilia a compreender, portanto, porque a crise da reprodução social não é apenas um sintoma do neoliberalismo e da crise capitalista pós-2008, mas guarda uma contradição estrutural com o próprio funcionamento do modo de produção. Na mesma medida em quem o capital precisa da reprodução social para renovar a força de trabalho e explorar os trabalhadores, o seu impulso ilimitado pela acumulação, pela valorização do valor, faz com que ele esprema o tempo e o corpo das/os trabalhadoras/es o máximo possível, degradando e limitando as condições de sua reprodução. Essa tendência é contradição imanente do sistema como um todo, que se desenvolve a partir deste cabo de guerra entre produção de lucro e reprodução da vida, em que a mulher trabalhadora, particularmente a mulher negra, está no centro. Portanto, neste texto, busco destrinchar a ideia de que a crise da reprodução social é estrutural ao capitalismo. Para isso, explicito como a reprodução social da força de trabalho é realizada nas diferentes esferas – pública, vinculada ao Estado; privada, vinculada ao capital; e dentro das unidades domésticas familiares – e quais são os processos que a determinam. Dentro disso, abordo mais detidamente sobre o trabalho doméstico, incluindo não só o processo de arrumação e limpeza da casa, preparação das refeições, lavagem das roupas, etc. Mas também o trabalho de cuidados, garantindo o conjunto da reprodução diária da força de trabalho ativa, assim como dos componentes da família trabalhadora que não estão trabalhando, como crianças, idosos, deficientes físicos, desempregados. Além disso, como esses processos se articulam com a renovação geracional da classe trabalhadora, não só a reprodução biológica em si, mas seu processo de socialização e disciplinamento em determinados valores e cultura, com toda a carga emocional e afetiva que vem acompanhada. Identifico de que forma o trabalho doméstico impacta na determinação de valor da força de trabalho, e como se relaciona com a unidade entre produção e reprodução social. Tais definições tem como objetivo estabelecer a relação contraditória entre produção e reprodução social. Assim, podemos perceber como o capital se beneficia deste trabalho gratuito para a sua reprodução ampliada e como, contraditoriamente, precisa limitar ao máximo possível seus processos, determinando uma diminuição daquilo que é garantido de forma pública e gratuita pelo Estado, capitalizando serviços e ampliando mercados. Concluo, portanto, que a crise da reprodução social é chave para compreender os processos atuais de degradação das condições de vida e as explosões sociais que vivemos no século XXI, mas também que demonstra uma tendência inerente ao próprio capitalismo diante da contradição de ser um sistema voltado à produção de lucro, mas que depende, para isso, do trabalho (e, portanto, da vida) de bilhões de mulheres e homens.