Resumen:
O presente artigo tem como objetivo analisar a racionalidade neoliberal a partir da ideia de um Estado fiador do mercado, enquanto forma utilizada para definição das vidas rentabilizáveis e das vidas falidas. Para isso, examinará a linha de crédito do Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), bem como o Programa Emergencial de Suporte a Empregos, ambos do governo brasileiro.A racionalidade neoliberal constituída por uma governamentalidade, atravessada por teorias científicas e modelos econômicos, organiza uma normatividade que hierarquiza em nome da fortificação do mercado. O mercado, enquanto matéria suprema, serve como referência peremptória na definição de quais vidas podem ser negociadas e quais podem ser eliminadas. O problema do neoliberalismo é compor uma forma de regulação do poder político global parametrizada nos princípios fundamentais da economia de mercado. “Não se trata, portanto, de liberar um espaço vazio, mas de relacionar, de referir, de projetar numa arte geral de governar os princípios formais de uma economia de mercado” (FOUCAULT, 2008, p. 181). Isso quer dizer que o neoliberalismo é uma arte de governar baseada em uma vigilância permanente, um Estado incisivo na regulação perfeita à concorrência desejada pelos neoliberais, em que os indivíduos devem ter liberdade de escolher, daí a ojeriza produzida em relação aos direitos sociais como se fossem restritivos e limitadores da autonomia individual. No neoliberalismo, a cidadania é dada pelo consumo.No que se refere à governamentalidade neoliberal, a intervenção desse modelo de gestão da vida se dá em todos os espaços da sociedade, por meio de seu principal regulador, o mercado. Ao contrário de uma relação que se quer separada do Estado, independente, o mercado no neoliberalismo se traduz como a única modulação possível na regência tanto das práticas governamentais, quanto de outras esferas da vida social. Examinando o Pronampe, instiuído em maio de 2020 pela lei 13.999, o apoio concedido não amplia o crédito destinado aos pequenos e micro empresários, pelo contrário, trata-se garantir aos bancos uma espécie de fiador ao endividado. Quer dizer, este programa autoriza a União a renegociar os empréstimos contratados até 30 de outubro ampliando o prazo de pagamento em até 48 meses, conforme decisão do tomador, tendo a taxa de juros anual máxima de 6% ao ano, que recairá sobre o saldo devedor apurado pelo banco emprestador quando da renegociação. Vale informar que há critérios para pleitear esse endividamento, por exemplo, microempresas cuja receita bruta anual é de R$360 mil.Outro exemplo é o Programa Emergencial de Suporte a Empregos instituído pela Medida Provisória n.944, de 2020, também, pelo governo federal brasileiro. Trata-se de crédito, melhor seria dizer empréstimo, concedido para pagamento da folha salarial de empresas que faturam até 10 milhões por ano. A linha de financiamento é composta por R$40 bilhões, nela o tesouro fica responsável por bancar 85% dos recursos, bem como da inadimplência, e os bancos privados com 15%.A justificativa para propor os referidos programas é que diante do agravamento da economia imposto pela pandemia da COVID-19 e a impossibilidade do micro ou pequeno empresário de saldar suas dívidas, o Estado possibilitaria a renegociação com a oferta financeira.O neoliberalismo faz operar entre o Estado e a economia um “duplo circuito”, em que o primeiro é o responsável por fazer a gestão da liberdade, isto é fabricar liberdade para consumi-la, promover espaços em que os indivíduos ajam conforme os seus interesses; e o mercado recepcionará estes no seu livre e incessante jogo, usufruindo da juridificação estatal dadas por regras de direito público. Na racionalidade neoliberal, o Estado existe enquanto espaço correlativo à liberdade econômica. Considerada agora sob seu aspecto positivo, a originalidade doutrinal do neoliberalismo é operar, segundo a expressão de Foucault, um “duplo circuito” entre o Estado e a economia. Se o primeiro fornece o quadro de um espaço de liberdade dentro do qual os indivíduos podem buscar seus interesses particulares, o livre jogo econômico criará e legitimará em outro sentido as regras de direito público do Estado. Essa análise foucaultiana, pode ser assim resumida “a economia produz legitimidade para o Estado, que é seu avalista” (Foucault, 2009, p. 114).O conjunto de medidas financeiras adotadas pelo governo federal brasileiro para conter a crise, agravada pela pandemia da COVID-19, fortalece o mercado financeiro, aposta na prorrogação do pagamento de dívidas e no aumento do crédito para segurar a economia. Passados dois anos da instituição daqueles programas, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central elevou a Selic para 11,75%. Desse modo, degradou ainda mais as condições daqueles que se socorreram nos programas acima, endividaram-se e agravaram ainda mais as suas dificuldades financeiras, ao mesmo tempo em que os bancos tiveram lucro recorde no pior ano da pandemia. Em 2021, morreram de COVID-19 mais de 424 mil pessoas. Neste mesmo ano, o banco Itaú, maior banco do país, lucrou R$26,9 bilhões, e o banco Bradesco lucrou R$26,2 bilhões, cifras registradas pelos próprios bancos. Certamente, o que alavancou lucros tão expressivos foi o aumento da taxa básica de juros definido pelo governo brasileiro que tem se comportado como melhor avalista destas instituições financeiras.Referências:FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008 (Coleção Tópicos).FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2009 (Coleção Tópicos).