Resumen:
No cenário brasileiro, a implementação de políticas públicas voltadas ao estímulo do microempreendedorismo vem sendo conduzida por parcerias entre Governo Federal e
Sistema S. Composto por nove instituições prestadoras de serviços, o chamado
Sistema S pode ser considerado um dos principais conglomerados de Aparelhos Privados de Hegemonia (APHs) da burguesia nacional.Nota-se, historicamente, a significativa atuação deste APH na ideologização do empreendedorismo, cujo sentido é a obtenção de consensos da classe trabalhadora às contrarreformas trabalhista e previdenciária, que avançam ao lado do desemprego estrutural e da precarização do trabalho no Brasil. Assim como nos anos 1980, quando assumiu diretrizes claramente vinculadas ao projeto neoliberal, tal aparelho privado de hegemonia permanece, após reformulações institucionais, sintonizado às necessidades do capital, agora sob as premissas ultraneoliberais que ganham força no Brasil a partir do golpe de 2016.Diante disto, a análise deste APH, com enfoque no Sebrae – uma de suas mais importantes instituições – revela-se um caminho fecundo à compreensão da cultura empreendedora no Brasil, cuja centralidade tem sido o estímulo ao microempreendedorismo formal como novo horizonte das relações de trabalho. Nesta conjuntura de pandemia, observa-se o aumento do chamado
empreendedorismo por necessidade, com o crescimento do trabalho informal, que atinge 38,4 milhões de brasileiros e, ao mesmo tempo, a elevação do índice de adesões ao Programa Microempreendedor Individual – PMEI, totalizando 14 milhões de formalizações em 2022 (IBGE, 2022). Tal programa vem sendo considerado a principal estratégia governamental de enfrentamento à informalidade e de estímulo ao microempreendedorismo. O PMEI possibilita a trabalhadores por conta própria o acesso a alguns direitos e benefícios previdenciários, conformando uma modalidade bastante peculiar de proteção social no Brasil: para acessar direitos trabalhistas limitados, os sujeitos se formalizam na categoria de Microempreendedores Individuais, constituindo-se, legalmente, “empresários de si mesmos”
. Vale ressaltar que o acesso a tais direitos é condicionado à contribuição exclusiva do trabalhador que se formaliza como microempreendedor individual, e que a inadimplência de tais contribuições implica a negação de acesso à proteção social. As estatísticas demonstram que apesar do contínuo crescimento das adesões ao programa, cresce, também, a taxa de inadimplência durante o período pandêmico, chegando a mais de 49,92% em 2021 (RECEITA FEDERAL, 2022).A implantação do Programa Microempreendedor Individual vem sendo operacionalizada pelo Sebrae desde 2008, a partir de um conjunto de práticas que vão desde a oferta de cursos gratuitos à distância, consultorias e atendimentos individualizados nas unidades da instituição, à construção de propostas, no âmbito legal, que regulamentam as atividades consideradas empreendedoras no Brasil. Cabe destacar, no entanto, que desde sua reinvenção institucional, a partir dos anos 1990, a educação empreendedora vem sendo a principal forma de atuação do Sebrae, que dispõe, atualmente, de um centro próprio voltado à produção de conteúdos e metodologias de empreendedorismo para serem utilizadas por professores e alunos nos diferentes espaços educacionais públicos e privados. A presente pesquisa, de cunho bibliográfico e documental, objetiva analisar as principais formas de atuação deste APH, destacando as vinculações de seus intelectuais orgânicos e as parcerias que realiza com outros aparelhos privados de hegemonia a nível internacional, como as agências das Nações Unidas, a exemplo da Unesco; instituições de ensino, como a
London Business School e
o
Babson College; bancos, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, entre tantos outros.A partir dos anos 2000, observa-se que a direção político-moral do Sebrae se vincula à nova lógica neoliberal de substituição do padrão fordista/taylorista para a acumulação flexível, a qual busca difundir uma visão de mundo que encena a liberdade liberal, aprofundando o individualismo, a exploração e fragmentação da classe trabalhadora (DEL ROIO, 2020). Essa rota põe em cena uma nova figura, o
self-made-man, que no Brasil se expressa, por exemplo, na criação jurídica do Microempreendedor Individual – MEI
.A continuidade do PMEI na política pública brasileira, desde os governos petistas (2003-2016) ao governo Bolsonaro, é reveladora de como o seu projeto é capaz de conciliar agendas governamentais distintas nas formas de disputa pela hegemonia, que vão desde o neodesenvolvimentismo (com todas as suas contradições) ao ultraneoliberalismo atual.Na conjuntura de crise pandêmica, a atuação do Sebrae tem sido marcada pela disseminação de informações acerca das medidas do governo federal de apoio aos micro e pequenos empresários, a exemplo das novas linhas de crédito, ao mesmo tempo que tem investido no seu potencial de produtor de dados primários e secundários sobre os impactos da Covid-19 nos pequenos negócios, desenhando tendências e prognósticos setoriais ao enfrentamento da crise por meio da plataforma DataSebrae / Covid-19.Em termos gerais, neste contexto o Sebrae reproduz as suas formas tradicionais de atuação em torno da ideologização do empreendedorismo como saída para o desemprego e informalidade no Brasil, cumprindo, também, o papel de articulador na criação de novas categorias ocupacionais abrangidas pelo PMEI — não somente as ocupações que apresentam baixa qualificação e rendimentos (a exemplo dos motoristas e entregadores de aplicativos), como as ocupações que exigem maiores níveis de qualificação e com melhores remunerações.Conclui-se que, em tempos de aprofundamento da crise estrutural, o fortalecimento da complexa trama de APHs é fundamental ao capital no sentido de reduzir as possibilidades à abertura de uma crise orgânica, de modo a assegurar a direção intelectual-moral das classes dominadas. O amplo investimento do Sebrae na difusão da ideologia empreendedora, ou da suposta “cidadania empreendedora”, revela a necessidade de o capital tornar não apenas aceitável, mas desejável o novo padrão das relações de trabalho no Brasil e no mundo por meio de mecanismos consensuais. Ao mesmo tempo que se diz representar os interesses dos pequenos empresários e dos microempreendedores, o Sebrae atua para assegurar o atendimento das necessidades da grande burguesia nacional, como a legitimação da desregulamentação trabalhista camuflada na criação de trabalhadores-empreendedores: MEIs. Nesse sentido, vem cumprindo com êxito a sua função de aparelho de dominação ideológica por meio de práticas educativas que disciplinam as condutas da classe trabalhadora nas relações de trabalho e sociabilidade.