Resumen:
A violência praticada contra as mulheres é um fato histórico, que se ancora nas desigualdades que caracterizam as relações de gênero nas sociedades patriarcais. Fenômeno complexo e multidimensional, a violência contra mulheres e meninas é um tipo de violência de gênero, que expressa a relação de poder e dominação do masculino em relação ao feminino. A violência contra as mulheres entrou em a pauta e passou a fazer parte das agendas públicas de governos, por todo mundo, devido às lutas feministas. No Brasil, a Lei nº 11.340 de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), é reflexo dessas mobilizações e trouxe grandes avanços para o combate à violência. Além do Estado reconhecer as violências sofridas como crimes, a Lei aborda a violência, como fenômeno complexo, que perpassa diferentes esferas do social, e que deve ser enfrentada, articuladamente, pelas políticas públicas de saúde, educação, assistência social, trabalho e segurança pública e justiça. (BRASIL, 2006). Foi esse contexto que serviu de leitmotiv para a criação de Projeto de Extensão Universitária, que, desde 2013, oferece atendimento multidisciplinar psicossocial e jurídico às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, residentes na Região Administrativa de Ceilândia, no Distrito Federal, “numa perspectiva feminista interdisciplinar, bem como de assessoria jurídico popular”. Essas atividades, historicamente, se realizaram aos sábados, entre 09 e 13 horas, na sede do Núcleo de Práticas Jurídicas, localizado na cidade. As reuniões de equipe bem como os atendimentos individuais e grupais às mulheres assessoradas para orientação jurídica e/ou psicológica, ocorrendo em distintas periodicidades, em virtude das necessidades, demandas e possibilidades. A pandemia de Covid-19 impactou diretamente essa dinâmica e as atividades passaram a ser realizadas por meio remoto. Neste texto se apresenta algumas reflexões sobre o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra mulheres na região de Ceilândia-DF, a partir de nossa participação no referido projeto, de nome “Maria da Penha - Atenção e Proteção a mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (PMP), no período de outubro de 2020 a julho de 2021. Pesquisadoras da área de sociologia e de serviço social nos somamos ao PMP, acompanhando as reuniões e atividades do grupo junto às mulheres em situação de violência doméstica e/ou familiar. Nossa perspectiva ao participarmos das atividades foi identificar os determinantes sociais que conformam a experiência de violência das mulheres assistidas; determinantes estes que se revelam ao campo do judiciário, nos atendimentos e impulsionam as assessoradas a demandarem a justiça e, eventualmente, desistiram dessas demandas. Entre estes determinantes, nosso foco se centrou no acesso aos serviços socioassistenciais, de saúde e de justiça, as redes familiares de apoio e a inserção em coletivos e grupos comunitários e/ou religiosos, assim como a ausência ou falta de tais redes e relações. A premissa é que a inserção, ou não, em programas e políticas sociais, a participação, ou não, em redes de parentesco, de vizinhança, redes associativas ou de sociabilidade (tais como igrejas, grupos comunitários, de mulheres dentre outras) se traduzem no acesso às informações e recursos, que podem contribuir objetivamente para a ruptura e o enfrentamento das situações de violência.A Ceilândia é uma das primeiras cidades do Distrito Federal. Criada em 1971, no bojo da Campanha de Erradicação das Favelas - CEI, de viés higienista, realizada a fim de retirar trabalhadores, que moravam no centro da capital, é atualmente a maior região administrativa do DF, com cerca de 489.341 habitantes, equivalendo a cerca de 15% da população total do DF. Localizada a 26 km da zona central de Brasília, a cidade possui uma gama expressiva de serviços ofertados por instituições públicas e privadas, com numerosas organizações do terceiro setor e entidades de defesa de direitos, criadas pela sociedade civil organizada. Dentre os serviços socioassistenciais destaca-se o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS); Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS); Centro Especializada de Atendimento à Mulher (CEAM); Casa da Mulher Brasileira (CMB); Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), CAPS - Álcool e Outras Drogas. Por ser a região administrativa que mais registrou casos de violência doméstica, nos últimos anos, de acordo com dados coletados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, a cidade foi escolhida para receber a segunda delegacia especializada para atendimento às mulheres, do Distrito Federal, em 2020. A quantidade significativa de equipamentos para ações e serviços de prevenção e assistência, não se mostra, entretanto, suficiente às necessidades da população. Situação que se revela dramática para as mulheres inseridas em situação de violência. Esse cenário que remete ao avanço do neoliberalismo, com a consequente redução dos investimentos públicos em políticas sociais, agravou-se sobremaneira com o surgimento da pandemia de Covid-19. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre março e abril de 2020, ocorreu um aumento de 22,2% de feminicídio no Brasil, em relação ao mesmo período, do ano anterior. A mesma pesquisa aponta, também, que durante a pandemia, as mulheres tem encontrado maior dificuldade para denunciar as violências sofridas. Isso se reflete na redução nas denúncias e nos registros de boletim de ocorrência, com a consequente produção de estatísticas oficiais que não condizem com a realidade.Durante o período de participação nas atividades foi possível observar alguns desafios sofridos pelas mulheres, devido a pandemia e ao isolamento social, que amplificam a violência doméstica. Dentre eles se destacaram a falta de acesso à tecnologia (internet e telefone, especialmente), falta de atendimento presencial no CRAS, superlotação da rede básica de saúde, falta de privacidade em casa e, convívio ininterrupto com o agressor, entre outros. A insufiência de serviços públicos ser faz notar ainda nas demandas encaminhadas ao PMP, que dificilmente podem ser acolhidas em sua integalidade, haja vista que, a condição de atividade de extensão do Projeto lhe imprime a dinâmica característica da universidade, com rotatividade de estudantes extensionistas e funcionamento conforme o calendário acadêmico.